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quarta-feira, 13 de março de 2013

Cotado ou coitado

Tenho a honra de ser amigo de Celina Veronese. Celina é líder da organização Mensageiras do Rei faz muito tempo. Além disso é redatora de dois periódicos que inspiram, informam e educam a molecada adolescente. No início desse ano, atendendo a pauta editorial Celina me liga e convida para eu colaborar com a edição deste trimestre apresentando minha perspectiva sobre a lei das cotas (nº 12.721) para negros nas universidades. Logo que começamos o contato disse a ela que minha opinião divergia, não do 'espírito da lei de compensação histórica', mas do absurdo abismo na falta de investimento e novos horizontes para a formação desta nova geração que surge. Pois bem, minha amiga perguntou se eu teria coragem de expressar minha opinião e, mais que isso, dar meu testemunho pessoal. Encarei o desafio. Escrevi o texto e ela, com toda perspicácia e sabedoria acumulada ao longo desse tempo, melhorou em muito o texto que escrevi. Colaborei também com esta ilustração que graciosamente foi inserida na capa da revista. A imagem de fundo é uma estilização do google earth da UERJ. Brinquei com o titulo COTATO ou COITATO.
A  ilustração foi colorizada em vetor. Segue o texto como foi publicado. A Revista Você Adolescente pode ser adquirida através do telefone (21)2570-2848. O Site da UFMBB é: www.ufmbb.org.br



Ah,Co(i)tado!
A chamada Lei das Cotas (Lei nº 12.711) passou longe da aceitação popular e bem perto de acaloradas discussões e questionamentos. Esta Lei obriga as universidades, institutos e centros federais a reservarem para candidatos cotistas metade das vagas oferecidas ao longo dos próximos quatro anos.
Cotado diz respeitoàquele que tem valor, conceituado e coitado é o que é digno de pena. Você, segundo a Lei é cotado ou coitado? Se a educação é para todos, porque só alguns têm acesso a ela de forma digna? Por que no chamado ensino superior uns conquistam a vaga pelo conhecimento e outros só tem valorpela cor da pele ou pela condição socioeconômica?
Que me desculpem os apaixonados defensores das cotas, mas graças a Deus e as nossas leis, tenho o direito de expressar minha indignação e contrariedade com esta Lei. Reconheço que existe um grupo muito bem intencionado com a ideia das cotas. Precisamos mesmo compensar essa história de discriminação. Mas, porque o número de cotas vai aumentar e não diminuir? Se investirmos progressivamente em educação de qualidade para todas as pessoas, e na base do ensino, não haverá necessidade de cotas para os “coitados”, não é mesmo?
Sou negro, meus primeiros anos de vida foi numa favela (desculpe, o politicamente correto é falar comunidade) no Rio de Janeiro. O amor de Jesus alcançou minha família e, graças ao cuidado da igreja - corpo de Cristo - fomos amparados. Cresci com outros meninos que tinham uma condição financeira muito superior à minha. Crescemos aprendendo que todos somos amados por Jesus. O Pai é nosso e o pão também é nosso (Mt 6.11).Na igreja e também na escola, eu conseguia acompanhar bem o que era ensinado. Tudo era bonito, as cores, as pessoas, como a beleza de uma caixa de lápis cor, até que cheguei ao final do antigo ginásio – hoje ensino básico.Um clima de competição começou a reinar na escola.Tínhamos que fazer prova para continuar estudando em escola pública.  Caí na ingenuidade de perguntar o porquê disso? A resposta foi direta: são poucas vagas e muitos alunos, só os bons podem fazer o segundo grau – ensino médio. Novamente a igreja ajudou.Já estávamosmorando em outro bairro.A líder dos adolescentes era também professora do Estado. Ela, carinhosamente, nos explicou como seria a prova, o que teríamos que estudar e ainda se prontificou a ajudar os interessados. Que sufoco, que pressão! Consegui ser aprovado numa escola bem longe de onde morávamos. Com a escassez de dinheiro – não exista a gratuidadepara estudantes –passei a ter que conciliar o tempo entre trabalho e escola se quisessecontinuarestudando. Cresci ouvindo: “preto tem que ser ótimo meu filho, para o verem mais ou menos”. Ninguém merece isso! Mas, ao mesmo tempo em que isso acontecia, meu pastor, meus líderes iam compartilhandocomigo conceitos e histórias bíblicas como a de José. O filho queridinho de Jacó que quando foi para o Egito continuou crendo em Deus e fazendo o melhor possível. Histórias como as de Daniel e seus amigos que resolveram não se contaminar. Adolescentesque oraram e desenvolveram uma disciplina tão grande que acabaram sendo os melhores no teste do rei da Babilônia. Lembra disso? (Dn1 e 2). Em minha cabeça essas histórias se misturavam com a realidade que eu vivia.
E eu ainda sonhando ser artista! Na família, a recomendação era: vá para o serviço militar. “Lá não existe tanta diferença”. Uma tia querida, mais corajosa e cheia de amor dizia: “Já viu artista crioulo? Só se for sambando ou jogando futebol.” Pois foi assim, ouvindo isso em casa e sofrendo a pressão na rua que cresci. Um de meus conselheiros, quando ouvia algum tipo de reclamação, ironicamente recitava: “...pobre de ti se pensas ser vencido sua derrota é caso decidido...” . Vez por outra, me fazia lembrar da frase que estava no portal de entrada do acampamento do Sítio do Sossego: “Deus nos deu serras para subir e forças para subi-las”. Até hoje meus olhos se enchem de lágrimas ao lembrar isso. Lutei muito, teimei muito, fui,como minha mãe disse “um cabeça dura”. Estudei muito para ser aprovado em uma Faculdade de pública. Pareceu até milagre quando vi meu nome na lista da UFRJ. Fui fazer a matrícula e voltei sema inscrição. O curso exigia tempo integral. Como iria deixar de trabalhar? Quem iria pagaro transporte,a comida, o material para que eu estudasse? Não aceitei que minha mãe trabalhasse ainda mais para “sustentar meu sonho doido”. Larguei tudo, odiei esse mundo injusto e fui dedicar-me ao trabalho. Meus chefes me vendo triste perguntaram o havia. Compartilhei a tristeza e fui estimulado a continuar lutando que logo eu seria promovido. Agarrado à igreja, como agora líder dos ER e professor da EBD fui parar no Seminário. E foi lá, no STBSB,que entendi que Deus não chama apenas pastores e ministros de música para o seu serviço, Ele convoca a todos, inclusive artistas (Ex 32. 2 a 5). Essa é Multiforme Graça de Deus. Procurei o pregador daquela noite. “Existe uma vontade de Deus para você. Descubra-a!”Voltei para as artes e pensei: quem sabe mais tarde volto para o seminário. Encarei o desafio. Fiz Licenciatura em Artes Plásticas, durante quatro anos, no Instituto Metodista Bennett. Ganhei uma bolsa participando do coral e ainda um valor em dinheiro colaborando com o jornal da instituição. Vivi intensamente o preconceito. Fiz parte, por um tempo, do movimento negro, mas hoje prefiro acreditar numa ‘conspiração divina’. Gente de qualquer condição que recebe amor, cuidado, orientação, esperança através do Corpo de Cristo, sem alarde, sem palanque, realiza o que busca. Cristo está aqui entre nós por meio de sua igreja (1 Co 12.27). Vamos gritar contra a injustiça, discriminação, preconceito, mas vamos agir, vamos fazer algo em prol da justiça, igualdade e valorização de todo ser humano. Meu amigo de cor (pretinho, moreninho, neguinho, marrom e tantas outras formas de colorizar a gente), meu parceiro, minha parceira de berço e de história, largue essa idéia de acomodar-se com a cota. Supere-se! Vá além da cota (e além da conta)! Ocupe o seu espaço pelo que você tem dentro e não pela cor que o apresenta do lado de fora. Faça como o apóstolo Paulo ensinou. Quem me fortalece é que faz com que eu possa todas as coisas. (Fl 4.13).

2 comentários:

  1. Posso comentar? rsrs. Faço minhas suas palavras e realmente temos histórias muito parecidas, com a diferença que acredito ser significativa de que não me lembro ter ouvido nenhum desestímulo por parte da minha família. Mas entrei no Cefet sem nenhum favorecimento e saí com o diploma técnico da mesma forma e depois na UFRJ com o diploma de arquitetura. Recomendo fortemente que ninguém conte com as cotas ainda que seja de direito revindicá-la, se for o caso, já que a lei permite. Mas é isso aí. Deus nos livre de uma geração descendente de escravos que mais de 100 anos depois da abolição não se julgue igualmente capaz. Porque já é ruim que nos digam que não somos, mas acreditarmos que não somos mesmo é pior ainda. Bjs e parabéns pelo artigo e pelo testemunho :)

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  2. Querida Paula, sabia que você iria se identificar com a história. Creio que, como aconteceu conosco, muitos viveram esse tipo de 'drama' e não têm oportunidade de serem ouvidos. Essa perspectiva legal não investe na base, na formação da nossa gente menos favorecida. Podemos lamentar mas, acima da tudo trabalhar para estimular a consciência de todos. Muito obrigado.

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